📜Mora, juros e justiça: como Lei 14.905/2024 silenciosamente redefine o custo do dinheiro no Brasil
O valor do dinheiro só existe em relação ao tempo. Mas como o sistema jurídico brasileiro define este "preço"? Analisamos a nova lei e seus impactos nos juros de mora.
O conceito responsável por definir o preço do dinheiro no tempo é o de juros. Tradicionalmente, ele é uma taxa incidente sobre um determinado valor monetário (dinheiro/capital), ao longo de um período de tempo delimitado. Dentre as muitas aplicações deste conceito, nos interessa diretamente aqui: os juros de mora.
Os Juros de Mora são aplicados sobre o valor de uma obrigação financeira, que não é paga dentro do prazo acordado. Diferentemente dos juros remuneratórios, que são pactuados livremente e expressam o retorno por emprestar capital; os juros de mora representam uma penalidade pelo inadimplemento — basicamente, uma taxa pelo atraso no pagamento, compensando o credor pelos possíveis prejuízos decorrentes desse atraso.
Sendo assim, este tipo de juros incide sobre valores em aberto de quaisquer obrigações financeiras, permeando: aluguéis, empréstimos, contratos, saldo a descoberto, cálculos judiciais, aplicações financeiras, serviços, relações bancárias, entre tantos outros. Ou seja: é um mecanismo de aplicação geral, transversal à vida econômica.
Legalmente, o Brasil adotou diferentes paradigmas para o entendimento do cálculo dos juros de mora, sendo o mais recente deles, antes da Lei 14.905/2024, aquele previsto no art. 406 do Código Civil, que estabelecia:
"Quando não forem convencionados, ou quando o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, os juros serão fixados de acordo com a taxa legal."
Porém, essa redação deu margem a duas principais interpretações correntes:
Aplicação do Código Tributário Nacional (CTN): Uma parte da doutrina e da jurisprudência defendia que a taxa aplicável seria de 1% ao mês, conforme previsto no artigo 161, §1º, do CTN.
Aplicação da Taxa Selic: Outra corrente — que se tornou majoritária no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ) — entendia que a taxa de juros para a mora de tributos federais era a Selic, a taxa básica de juros da economia. O STJ acabou consolidando o entendimento de que: a Selic englobaria tanto os juros de mora quanto a correção monetária, não podendo ser cumulada com outro índice de atualização.
Contudo, apesar da consolidação jurisprudencial do STJ, a divergência persistia nas instâncias inferiores1, o que gerava insegurança jurídica e operacional na aplicação dos juros legais.
Buscando, dentre seus campos de impacto, encerrar a controvérsia, foi sancionada a Lei nº 14.905/2024, que alterou a redação do artigo 406 do Código Civil. A nova formulação passou a prever expressamente:
Art. 406. Quando não forem convencionados, ou quando o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, os juros serão fixados de acordo com a taxa legal.
§ 1º A taxa legal corresponderá à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), deduzido o índice de atualização monetária de que trata o parágrafo único do art. 389 deste Código.
§ 2º A metodologia de cálculo da taxa legal e sua forma de aplicação serão definidas pelo Conselho Monetário Nacional e divulgadas pelo Banco Central do Brasil.
§ 3º Caso a taxa legal apresente resultado negativo, este será considerado igual a 0 (zero) para efeito de cálculo dos juros no período de referência.
Agora, portanto, fica estabelecido um índice oficial – calculado e de responsabilidade do CMN (cálculo) e Banco Central (divulgação) – que se baseia na taxa básica de juros (a taxa Selic) como parâmetro para seu cálculo.
📌 E o que muda, afinal?
Na prática cotidiana — tanto em contratos quanto em cálculos judiciais — antes da Lei 14.905/2024, os juros de mora eram calculados da seguinte forma:
Esse regime, por sua vez, permitia uma uniformidade relativa nos cálculos, mas ainda gerava significativas inseguranças jurídicas: Um grande volume de contratos não especificavam sua taxa de juros (quiçá sua mora), ou ainda extrapolavam os padrões de mercado. Algumas decisões aplicavam 1% ao mês, outras a Selic... Não é difícil encontrar até aplicações simultâneas de TR + juros, mesmo quando a TR estava zerada por longos períodos.
🔁 Como passa a ser com a Lei 14.905/2024
Com a nova redação do art. 406, retificado pela Lei 14.905/2024, temos uma sistemática bifásica e regulamentada:
A atualização monetária continua sendo calculada conforme os parâmetros legais pertinentes — como a Tabela Prática dos Tribunais (a exemplo do TJSP), ou nos termos do parágrafo único do art. 389 do Código Civil (incluído pela mesma lei), que expressamente adota o IPCA-E como índice oficial de correção.
Já os juros de mora passam a ser indexados pelo instrumento chamado de Taxa Legal, que agora é pontualmente definida como sendo a Selic deduzida do IPCA-E/IPCA-152 — isto é, ele passa a ser indexado pela chamada Selic real3.
A metodologia de cálculo e a forma de aplicação são estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e operacionalizadas pelo Banco Central do Brasil.
📅Marco temporal
Embora a nova lei tenha entrado em vigor em 29 de agosto de 2024, respeitando o prazo de vacatio legis de 60 dias, os fatores da Taxa Legal passaram a ser apurados com base nos dados de setembro/2024, sendo divulgados oficialmente em outubro.
Na prática, tanto nos sistemas do Bacen quanto nos tribunais (como TRF-4), até agosto de 2024 aplica-se como mora o juros fixos de 1% a.m. Para inadimplementos ocorridos após 29/08/2024, ou períodos de mora posteriores a essa data, aplica-se a nova sistemática da Lei 14.905/2024.
🧮E como é calculada a Taxa Legal
Atendendo ao § 2º do novo art. 406, o Conselho Monetário Nacional (CMN) editou a Resolução CMN nº 5.171/2024, que estabelece a metodologia oficial de cálculo da Taxa Legal. A resolução define e apresenta a fórmula aplicável e suas referências (como a sua indexação).
O Banco Central do Brasil, por sua vez, ficou responsável por apurar e divulgar a taxa no SGS - Sistema Gerenciador de Séries Temporais, usando séries codificadas e garantindo transparência ao processo técnico.
É possível conferir o índice isolado a partir da busca por termo textual, como "Taxa Legal", ou pelos códigos diretos para o índice e suas variações:
• 29541 – Fator da Taxa Selic mensal para cálculo da Taxa Legal
• 29542 – Fator do Índice de Preços ao Consumidor (Fator IPCA) para cálculo da Taxa Legal
• 29543 – Taxa Legal (mensal)
📜 Posicionamento institucional dos juros legais
A Lei 14.905/2024, ao resolver o impasse interpretativo acerca do art. 406 do Código Civil, vai além de um simples ajuste jurídico: ela reformula o papel institucional dos agentes normativos ao transferir ao Conselho Monetário Nacional (CMN) e ao Banco Central do Brasil (BCB) a responsabilidade pelo cálculo da taxa de juros legal.
Esse posicionamento institucional retira do Poder Judiciário seu antigo protagonismo hermenêutico, e institucionaliza um modelo financeiro de aplicação dos juros de mora, ancorado em parâmetros da política monetária nacional e consonante ao cenário macroeconômico. Trata-se, efetivamente, de uma redefinição silenciosa do referencial legal do valor do dinheiro no tempo.
📈 A Selic como núcleo de sentido econômico-jurídico
Observando nossa realidade material e estrutura concreta que nos sustenta (isto é, a economia monetária) percebemos que o sistema financeiro opera com base em indicadores de referência — utiliza-se de ferramentas para atribuir sentido a conceitos econômicos como o de juros — sendo a Taxa Selic, o mais central entre eles.
Como instrumento de política monetária, a Selic é ao mesmo tempo ferramenta operacional e indicador de custo do dinheiro. Impactando direta e profundamente preços, consumo, crédito, renda e inflação.
Observa-se então, que estamos vivendo um ciclo de alta histórica dessa taxa, que vem subindo initerruptamente desde 2021, como podemos verificar:
Portanto, foi coerente que, em momentos em que a Selic oscilava em torno de 12% ao ano, se convencionasse 1% ao mês como taxa de juros de mora — criando uma aproximação funcional entre a penalidade civil/contratual e o custo médio do dinheiro no mercado. Assim, o custo pelo inadimplemento mantinha uma certa proporcionalidade em relação à volatilidade do juros de referência.
Contudo, o cenário atual é outro... Com a Selic alcançando 15% ao ano (em julho de 2025), retornamos a patamares não vistos desde antes de julho de 2006. Neste novo contexto, a vinculação dos juros legais à Selic real (Selic – IPCA-E) pode reequilibrar o custo do inadimplemento à dinâmica real da economia, inserindo o cálculo da mora em um contexto mais sofisticado de leitura da taxa de juros, por um lado.
Por outro lado, é preciso reconhecer que a nova sistemática também aproxima a mora civil de uma lógica de aparelhamento financeiro. Vincular a penalidade do inadimplemento a um referencial de mercado — por mais técnico que seja — traz consigo propriedades que extrapolam o campo jurídico, como a volatilidade.
Importa estar atento ao risco de efeitos colaterais, pois, a depender do grau de oscilação da Selic Real, a própria previsibilidade dos contratos pode ser afetada, sobretudo em relações desbalanceadas entre as partes.
Em hipótese extrema, ainda que não estejamos falando de um mercado secundário, não é difícil considerar a especulação predatória como um fator a ser monitorado, podendo, em devaneios, até culminar em formas de especulação institucionalizada.
⚖️ Como fazemos agora?
Independentemente, trata-se de um fator que precisa ser absorvido com consciência — até porque transfere maior responsabilidade sobre a gestão das taxas em si.
O novo regime pode promover maior aderência à macroestrutura econômica, corrigir distorções geradas pelos antigos parâmetros fixos e efetivamente torna a penalidade por inadimplemento mais sensível à política monetária e à inflação corrente — ampliando, assim, a coerência técnica entre o conceito jurídico de mora e os instrumentos financeiros que utilizamos.
Destarte, essa mudança não se trata de uma neutralidade. Ela representa uma reconfiguração do modo como precificamos o risco privado — integrando a penalidade por inadimplemento à lógica da política monetária e reposicionando o Estado como mediador indireto das relações contratuais através da taxa de juros. Temos agora um modelo que reflete o comportamento da economia como um todo, aproximando o direito civil da realidade macroeconômica.
Resta observar como esse novo paradigma será absorvido na prática: quais impactos reais produzirá, quais distorções poderá corrigir ou gerar e quais setores serão mais beneficiados ou tensionados por essa nova forma de conceber o juros de mora. Cabe, portanto, a juristas, economistas, peritos, gestores e contratantes reconhecer que essa não é apenas uma mudança técnica de cálculo, mas uma redefinição silenciosa das regras do jogo — em que o tempo, a moeda e o contrato passam a dialogar sob uma nova linguagem com a realidade econômica.
Para se aprofundar na prática quanto o juros de mora acesse o artigo: Lei 14.905/2024: O novo marco institucional dos juros legais
Para entender como calcular, acesse o artigo: Como aplicar os juros legais segundo a Lei 14.905/2024 – Guia Prático
Bibliografia.4
Entende-se por “instâncias inferiores” os órgãos judiciais de 1º e 2º graus — como varas cíveis e tribunais estaduais ou regionais — cujas decisões podem ser revistas por cortes superiores, como o STJ. São nesses níveis que frequentemente surgem interpretações divergentes da jurisprudência consolidada.
IPCA – Índice de Preços ao Consumidor Amplo é um instrumento, em forma de indicador, que mensura os níveis de preço gerais balizados por um determinado período. Inicialmente, a Taxa Legal foi atrelada ao IPCA-E (calculado trimestralmente), porém, posteriormente a CMN ratificou o cálculo com base no IPCA-15 (calculado a cada 15 dias).
Tomando como verdadeiro a representatividade do IPCA como um indicador da inflação, A Selic descontada o preço da inflação demonstra o retorno real (acima da inflação) que ocorreu ao valor aplicado. O tema Selic pode ser explorado com mais detalhe em outra ocasião).
Bibliografia:
LEI Nº 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002 (CÓDIGO CIVIL): BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em:Código Civil | LEI Nº 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002. Acesso em: 16 jul. 2025.
LEI Nº 14.905, DE 28 DE JUNHO DE 2024: BRASIL. Lei nº 14.905, de 28 de junho de 2024. Altera a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para dispor sobre a taxa de juros legal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 jun. 2024. Disponível em: LEI Nº 14.905, DE 28 DE JUNHO DE 2024. Acesso em: 16 jul. 2025.
TRF4 - Taxa Legal (Lei Nº 14.905/24): TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO. DIVISÃO DE CÁLCULOS JUDICIAIS DA JFRS. Taxa Legal (Lei Nº 14.905/24). [S. l.]: TRF4, [entre 28 jun. 2024 e 16 jul. 2025]. Disponível em: Taxa Legal (Lei Nº 14.905/24) - TRF4. Acesso em: 16 jul. 2025.
BCB — Taxas de juros básicas – Histórico: BANCO CENTRAL DO BRASIL. Taxas de juros básicas – Histórico. [S. l.]: Banco Central do Brasil, [entre 2021 e 2025]. Disponível em: Taxas de juros básicas – Histórico - Banco Central do Brasil. Acesso em: 16 jul. 2025.
SGS – 29543 - Taxa Legal: BANCO CENTRAL DO BRASIL. SGSPub: Consultar Valores e Séries – Taxa Legal (Série 29543). [S. l.]: Banco Central do Brasil, [entre 2021 e 2025]. Disponível em: Consultar Valores. Acesso em: 16 jul. 2025.
RESOLUÇÃO CMN Nº 5.171, DE 29 DE AGOSTO DE 2024: CONSELHO MONETÁRIO NACIONAL. Resolução CMN nº 5.171, de 29 de agosto de 2024. Dispõe sobre a taxa de juros aplicável aos contratos de mútuo. Brasília, DF: Banco Central do Brasil, 29 ago. 2024. Disponível em: Resolução5171.pdf. Acesso em: 16 jul. 2025.